O Cadastro Ambiental Rural (CAR) não é documento fundiário. O Código Florestal de 2012, que o tornou obrigatório para todos os imóveis rurais no país, proibiu explicitamente que fosse usado para regularizar uma posse ou propriedade. Nem sempre o que está escrito, porém, reflete-se na prática: o instrumento está sendo usado para tentar legitimar a ocupação irregular de terras.
No Pará, por exemplo, são recorrentes os relatos de invasões de terras e pressão sobre pequenos agricultores e comunidades tradicionais com o uso do CAR como suposto documento fundiário.
As sobreposições de cadastros são comuns. De acordo com dados do Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) divulgados pelo portal De Olho nos Ruralistas, mais de 15 milhões de hectares foram cadastrados sobre Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs) em todo o país. É uma área maior que a Inglaterra. Os estados com mais registros sobrepostos são Amazonas, Mato Grosso e Pará. Existem também sobreposições entre imóveis rurais. Em levantamento do ano passado sobre o Pará, a Agência Pública encontrou 108 mil imóveis com algum tipo de sobreposição com outros imóveis rurais, em um universo de 150 mil cadastros, ou seja, 72% do total.
Lacunas na regularização fundiária
De acordo com alguns técnicos ouvidos pela reportagem, o uso do CAR na tentativa de legitimar ocupações ilegais e os conflitos decorrentes dessa prática são potencializados pela falta de um processo de regularização fundiária avançado nos estados, em especial onde a malha fundiária não é tão consolidada.
“Se tem uma área com uma base fundiária muito ruim, uma situação fundiária muito confusa, isso vai levar a que o CAR seja ruim também e haja sobreposições. Não é um problema do CAR, é um problema da estrutura fundiária daquela área”, defende Taiguara Alencar, diretor do Projeto Regularização Ambiental/CAR da Agência de Cooperação Técnica Alemã (GIZ). A instituição dá apoio à execução do CAR.
“Não é o Cadastro que gera o desmatamento, que fomenta a grilagem. O Cadastro mostra o que está acontecendo. Antes, a gente sabia o que acontecia, mas não sabia onde estava, quem era, qual era a tendência disso”, aponta Janaína Rocha, gerente executiva de Florestas Comunitárias do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), órgão responsável por gerir o Sicar na esfera federal.
A promotora do Ministério Público do Pará Eliane Moreira, porém, vê com ressalvas o argumento de que o CAR só traz para o mapa o que já acontece no campo. “Não é bem assim. O CAR cria um elemento a mais”, argumenta. De acordo com ela, operações da Polícia Federal provam que existe a prática do cadastramento, mesmo sem ocupação prévia para legitimação da ocupação ilegal e a prática de crimes (saiba mais no fim da reportagem).
Demora na análise pode agravar conflitos no campo
Raimundo Deusdará, diretor do SFB, garante que os cadastros irregulares serão cancelados no momento da análise, que é responsabilidade dos órgãos estaduais de meio ambiente. “Já chegamos em várias pessoas de má fé e já cancelamos vários cadastros em função disso”, diz.
A análise, no entanto, caminha a passos lentos. Números do Sicar disponibilizados pelo SFB indicam que passaram pela análise 46.922 imóveis, menos de 1,5% do total de cadastros inseridos no sistema, até fevereiro de 2017 (veja aqui).
Manter o CAR no sistema, mesmo que em situação pendente, permite que grileiros e invasores de terras continuem tentando usá-lo para legitimar ocupações irregulares. Isso se reflete em pressão sobre antigos ocupantes, muitos deles sem familiaridade com o funcionamento e as regras do cadastro.
“Quem leva vantagem é o madeireiro, o empresário, que tem dinheiro e consegue chegar primeiro e fazer. Quando o pequeno produtor pensa que ainda é dele, já está dando sobreposição”, critica Ladilson Amaral, secretário de Política Agrícola, Agrária e Meio Ambiente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém (PA).
“O CAR hoje é um dos componentes da violência no campo. Não tenho dúvida. Ele potencializa um clima de tensão na disputa pela terra, sobretudo na Amazônia”, avalia Danicley de Aguiar, da campanha Amazônia do Greenpeace. “Validar o CAR é uma forma de colaborar para a diminuição do estado de tensão no campo”, complementa.
Também existe o perigo de que, mesmo com a análise, sejam aprovados cadastros indevidos. A Agência Pública, em levantamento realizado no ano passado, por exemplo, encontrou 20 cadastros analisados e aprovados pela Secretaria de Meio Ambiente (Semas) do Pará com incidência sobre TIs.
“A gente já tem dados suficientes de CARs indevidos e nada é feito. Não se cancela esse CAR, não se toma providências para apurar a grilagem de terras incidente nele, eles continuam circulando como se válidos fossem”, critica a promotora Eliane Moreira.
O engenheiro florestal e consultor socioambiental Carlos Augusto Ramos dá o exemplo de um CAR de 58 mil hectares feito por uma empresa em cima das Reservas Extrativistas (Resex) Mapuá e Terra Grande Pracuúba, também no Pará. No ano passado, o cadastro estava classificado como suspenso no sistema. Recentemente, ao checá-lo novamente, verificou que estava como “pendente”. “Ou seja, em vez de regredir, ele avançou”, conclui.
Prova fundiária: uma fraqueza?
Especialistas avaliam que a exigência de documentação que prova que o cadastrante é realmente proprietário ou posseiro legítimo é insuficiente. É o caso de declarações de sindicato rural e contrato de promessa de compra e venda. Para a inscrição no CAR, são aceitos cinco tipos de documentos de propriedade e mais 22 para declaração de posse.
“O Código Florestal amarra o CAR à posse ou propriedade. Os órgãos gestores do sistema deveriam ser rigorosos na exigência dos documentos de posse e de propriedade, e não são”, considera Eliane Moreira.
“‘Venham todos para o Cadastro’. Essa era a mensagem. O Cadastro é amigável. Eu não podia restringir nem aquele que tem o mais perfeito documento nem aquele que não tem documento algum”, justifica Deusdará. De acordo com ele, isso permite criar um mapa mais fiel de como é a situação das APPs e RLs e, de forma mais geral, da ocupação do meio rural brasileiro. O diretor do SFB explica que, nos casos de sobreposição entre dois imóveis rurais, os dois cadastros ficam pendentes no sistema, aguardando a avaliação do órgão estadual ambiental. A resolução da sobreposição vai depender da comprovação fundiária apresentada pelos cadastrantes.
Existe a possibilidade, no entanto, de que os documentos apresentadas pelos lados em disputa não resolvam a questão, como no caso de um CAR que tenha a declaração do sindicato e de um outro sobreposto que tenha um contrato de compra e venda de posse. Este é o exemplo utilizado por Brenda Brito, pesquisadora do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
“Os dois documentos são precários do ponto de vista fundiário. O sindicato não tem autoridade para dizer que aquilo é uma posse e dois particulares também não”, explica. Ela considera que casos assim só poderiam ser resolvidos pela interação com os órgãos fundiários e que não há, ainda, uma estratégia clara por parte dos órgãos ambientais para isso.
CAR na regularização fundiária
No Pará, está em desenvolvimento uma ferramenta que permitirá a utilização de dados do Sicar nos processos de regularização fundiária. Trata-se do Sistema de Cadastro Rural Fundiário (Sicarf), projeto do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) em parceria com o Imazon. O projeto visa dar maior agilidade e transparência aos procedimentos de regularização fundiária do Iterpa, por meio da informatização e da integração de diferentes bancos de dados. O Iterpa planeja começar a utilizar o Sicarf em fevereiro. Por enquanto, está em desenvolvimento e passa por testes.
“Já tem mais de 70% da área do estado coberta com o CAR. A gente não vai deixar de aproveitar essas informações”, diz William Fernandes, diretor técnico do Iterpa.
O Sicarf vai ser composto de cinco módulos: banco de dados, análise, transparência, acompanhamento e integração. No primeiro módulo, serão declaradas informações sobre imóveis rurais localizados em terras estaduais. Desta forma, será construído um banco de dados das demandas fundiárias para guiar as ações de campo no processo de varredura do Iterpa, realizada para levantamento das demandas fundiárias. O declarante – que pode ser o próprio ocupante do imóvel, técnicos contratados e funcionários dos governos municipais e estadual – vai inserir dados pessoais e informações sobre o imóvel, incluindo o georreferenciamento da área.
Haverá uma forma de importar automaticamente parte das informações de um cadastro para outro: de um conjunto de aproximadamente 90 dados que precisam ser inseridos no Sicarf, 35 serão trazidos do Sicar. Brenda Brito explica que poderão ser aproveitadas do CAR informações pessoais do beneficiário – como nome, endereço, nome dos pais – e o mapa georreferenciado da área, se for do interesse do declarante. Essas informações também ajudarão a guiar o planejamento das ações em campo para a varredura fundiária.
Como os dados do Sicar são fornecidos pelo próprio cadastrante, no entanto, especialistas ouvidos pela reportagem demonstraram preocupação de que, ao usar essas informações na regularização dos imóveis rurais, acabem sendo regularizadas áreas cadastradas de má-fé.
O Ministério Público do Estado do Pará emitiu uma recomendação sobre o Sicarf. No documento, os promotores consideram que o fato de o Sicarf tomar como base o CAR acaba “desviando a sua finalidade legalmente prevista no art. 29 do Código Florestal, qual seja, de regularização ambiental e nunca fundiária”.
“O CAR é um dos documentos que vão ser usados para fazer a análise, mas ele não é e não vai ser nunca o principal documento”, garante Brito. “O CAR, pela legislação, não é um instrumento que gera nenhum título fundiário, mas nada impede que ele seja usado para ajudar na avaliação da regularização”, defende. Ela acrescenta que também serão utilizados dados oficiais de desmatamento.
Para evitar declarações de má fé, o Iterpa e o Imazon estão desenvolvendo filtros que irão bloquear cadastros incidentes sobre terras destinadas, terras federais e aqueles de áreas com mais de 2,5 mil hectares. Além disso, será mantida a fiscalização em campo – procedimento já realizado pelo Iterpa – para verificação dos terrenos declarados e averiguação de casos de sobreposição e conflitos.
Expectativa de regularização fundiária pelo CAR: um perigo
A questão é que um instrumento como o Sicarf levanta o debate sobre as expectativas de que o cadastro ambiental possa, em algum momento, gerar direitos sobre a terra cadastrada.
Carlos Eduardo Sturm, diretor de Fomento e Inclusão Florestal do SFB, acredita que um dos fatores que podem ajudar a explicar a quantidade de casos de conflito envolvendo o CAR no Pará é justamente a vinculação com as demandas de terras. “O início do Cadastro Ambiental do Pará teve uma íntima ligação com a regularização fundiária. Eles tentaram fazer essa conexão em 2009, 2010”, diz.
O Decreto Estadual 2.135/2010, por exemplo, traz como um dos documentos exigidos para o requerimento de regularização fundiária o CAR.
“O potencial de acirramento [de conflitos] que existe é a vinculação do CAR ao elemento fundiário. Dar a expectativa de que o CAR vai gerar a regularização fundiária. É isso que cria o conflito”, acredita a promotora Eliane Moreira.
O uso do CAR em esquemas criminosos
Há um ano, a Polícia Federal desbaratou, com a Operação Rios Voadores, um esquema de grilagem de terras e desmatamento no Pará comandado por Antônio José Junqueira Vilela Filho, o Jotinha. Ele movimentou R$ 1,9 bilhão, entre 2012 e 2015, e desmatou 290 km2 de floresta em Altamira. Jotinha é considerado o maior desmatador individual da Amazônia e recebeu a maior multa já aplicada pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), no valor de R$ 120 milhões.
A quadrilha invadia a floresta, desmatava, vendia a madeira de maior valor e derrubava o restante de mata para criar pastagens. Depois, registrava a área no CAR em nome de “laranjas”. As áreas eram arrendadas para terceiros ou utilizadas pelos próprios integrantes do esquema criminoso, usando o cadastro como suposta prova fundiária.
Outra operação da PF, a Castanheira, também verificou o uso semelhante do CAR em outro esquema de grilagem e desmatamento no Pará. Em áudio gravado de ligação telefônica entre integrantes do esquema, um deles explica que o CAR seria um dos documentos para forjar uma suposta prova para obter o título da terra.
“A nossa experiência indica que o CAR seria uma primeira etapa dentro de uma cadeia da especulação. A legitimação local se faz a partir do momento em que o cara tem um documento. Esse documento, no caso, é o CAR”, resume Juan Doblas, assessor do ISA.
Em outro caso, uma decisão liminar da Vara Agrária de Santarém usou o CAR como documento fundiário, em benefício de membros da família Vilela. A decisão previa a reintegração a retirada de 80 camponeses de uma área rural reclamada por supostos proprietários, em Novo Progresso. Após manifestação da Ouvidoria Agrária Nacional e pedido de reconsideração da liminar pelo Ministério Público, o juiz suspendeu a decisão (saiba mais).
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