Raul do Valle – Coordenador do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA – Instituto Socioambiental
Espécie nativa em meio a monocultura no Cerrado (foto: Beto Ricardo)
Em maio deste ano, saiu a tão aguardada regulamentação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e das linhas gerais dos Programas de Regularização Ambiental (PRA), os dois principais instrumentos necessários à implementação da nova legislação florestal federal 9Lei Federal 12.651\12). Elaborada sem a participação do movimento ambientalista ou do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) – mas consta que com a presença frequente de representantes da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) – ela foi, no geral, previsível, embora tenha trazido algumas surpresas bastante preocupantes e que não devem ser deixadas de lado.
Em primeiro lugar, para não ficar apenas falando de problemas, há de se reconhecer que, muito em função da publicidade que ganhou o caso, a CNA não conseguiu emplacar sua demanda de cadastramento fracionado de fazendas, o que ampliaria em muito a anistia já concedida pela nova lei, sobretudo aos grandes e médios proprietários. Nesse aspecto, portanto, a Instrução Normativa no 2 do Ministério do Meio Ambiente, que regulamenta os procedimentos para inscrição do imóvel rural no CAR, foi correta, embora não tenha feito mais do que seguir a definição de imóvel rural que já é utilizada há décadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Também naufragou a tentativa de desonerar a recuperação de Reserva Legal (RL) de grandes proprietários com base em interpretações absurdas da aplicação da lei no tempo. A CNA pressionava para que a regra federal adotasse sua interpretação, bastante particular, mas que já virou lei em Goiás, de que a RL só teria começado a valer para biomas “não florestais” (Cerrado, Caatinga, Pantanal e Pampas) de 1989 em diante. Isso significaria não só um atentado à hermenêutica jurídica, mas sobretudo uma pá de cal nas já poucas esperanças de recuperação de parte do Cerrado que foi intensamente derrubado em São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás. Importante destacar que essa tentativa segue em curso, inclusive consta de recente projeto de lei apresentado pela assembleia legislativa paulista, mas, pelo menos em nível federal, não prosperou.
Implantação do CAR e do PRA
Dito isso, passemos à análise do que interessa: com o início da implantação do CAR e do PRA estaríamos, finalmente, a caminho da recuperação dos milhares de nascentes, riachos, ribeirões e encostas que se encontram atualmente em processo de morte lenta por falta de florestas protetoras? Infelizmente, embora alguns entendam o contrário, não podemos ainda afirmar que sim, embora o desejássemos profundamente.
A primeira questão que salta aos olhos é como, até o momento, nenhuma outra política de apoio à regularização ambiental, para além do CAR, que é mero instrumento, foi pensada, alinhavada e estruturada. Imaginar que a mera inscrição de imóveis rurais no CAR já seria suficiente para que um número expressivo de produtores resolvesse, por conta própria, começar a recuperar florestas, é, no mínimo, ingênuo. Se não houver, por parte do governo federal e estados, um plano estruturado, com orçamento disponível, para oferecer assistência técnica e apoio financeiro ao produtor, nenhuma peça irá se movimentar no tabuleiro. Se não houver um conjunto de incentivos econômicos que sinalizem ao produtor rural que é viável e vantajoso recuperar florestas, não sairemos do zero. Mas, como já era previsto, o pacote de medidas de regulamentação da lei florestal nada trouxe a respeito.
Pelo contrário, chama a atenção como, ao criar o Programa Mais Ambiente Brasil, o Decreto federal 8.235\14 sequer previu a existência de incentivos econômicos, embora propostas concretas existam. O programa fala de “educação ambiental” (!) e cita genericamente a necessidade de assistência técnica, que supostamente seria disponibilizada pelo Ministério do Meio Ambiente, ou pelo menos a suas expensas (art. 14). Como o MMA não tem nenhum órgão vinculado que ofereça o serviço, e seu orçamento vem proporcionalmente diminuído ao longo dos últimos 10 anos, não é crível que desse mato saia algum coelho. O Mais Ambiente também não delega nada à recém-criada Agência Nacional de Assistência Técnica (Anater) ou aos ministérios diretamente envolvidos com a produção rural (Desenvolvimento Agrário e Agricultura).
Baixíssima prioridade
O que esse pacote deixa claro – ao não envolver nenhum outro órgão federal com a agenda da regularização, não prever qualquer incentivo ou medida de apoio efetiva e por haver demorado tanto a sair – é que essa agenda é de baixíssima prioridade para o governo federal. Ele parece entender que sua missão foi cumprida com a formalização do cadastro.
Seria menos desalentador se pelo menos ele fosse uma garantia de que em breve teríamos um bom raio-x da situação ambiental de cada um dos imóveis rurais do país, com o qual poderíamos pensar em políticas e definir estratégias para a regularização. Porém, acabou vencendo a tese de que o CAR é “declaratório”, tal como seria a declaração do imposto de renda. Isso significa, na prática, que o produtor poderá fazer seu cadastro sem o apoio de um técnico especializado, sem sequer fazer um levantamento de campo. Pela regra federal, todo produtor é incentivado a entrar no site (www.car.gov.br) e fazer diretamente seu cadastro, desenhando na tela de um computador suas áreas consolidadas, de uso restrito, as encostas com mais de 45o de inclinação etc. Como a lei é complexa, o sistema, por mais simplificado que possa ser, também o é. Não dá para comparar a dificuldade que se tem em somar notas de despesas médicas para fins de desconto do imposto de renda com a de se desenhar com um mouse sobre uma imagem onde estão exatamente suas encostas, seus rios, os remanescentes de vegetação nativa em 2008, data definida pela nova lei para as anistias a desmatamentos ilegais (a imagem é de 2012) etc. Portanto, é de se esperar que, seja por dificuldades – bastante compreensíveis – em manejar o sistema ou compreender a lei, seja por deliberada intenção de utilizar um sistema falho para “esconder” passivos (por má fé), as informações apresentadas sejam bastante distorcidas.
Nesse sentido, quando o governo federal diz que o CAR é “declaratório” está querendo dizer: “não meto minha mão no fogo pela qualidade de suas informações”. Um bom começo, não? Combinado com o fato de que os órgãos estaduais, que terão de analisar e possivelmente refazer esses cadastros, não estão se preparando para assumir essa tarefa hercúlea, o que se pode esperar, neste momento, é uma demora de décadas (e não de anos) até que uma parte significativa dos cadastros tenha sido validada e tanto o produtor como a sociedade saibam com um mínimo de segurança o que deve ou não ser recuperado ou preservado.
Para se ter uma ideia, no âmbito do Observatório do Código Florestal foram encaminhados questionários a órgãos estaduais de 17 estados. Dos que responderam até o momento (SP, MG, PR, SC e CE), nenhum contratou técnicos dedicados a analisar os cadastros que serão feitos e nenhum apresentou uma estratégia deliberada de priorização nesse processo. Ou seja, nenhum está se preparando para avalanche de informações provocada pelo início do cadastramento. Só em São Paulo, já foram feitos 7.189 cadastros, com uma área de 1,1 milhão de hectares – nenhum foi validado.
Aí surge um paradoxo. Uma vez concluída a inserção de informações no CAR, e tendo algum tipo de passivo a recuperar ou não, o produtor será convidado a aderir ao PRA. Se ele tiver apenas áreas a consolidar (não recuperar) – um pasto em uma encosta, por exemplo – estará tudo certo, pelo menos para ele. Se, no entanto, houver algum passivo que tenha de ser recuperado, ele deverá assinar um termo de compromisso, que terá força de título executivo extrajudicial (poderá ser usado como prova cabal da obrigação de recuperar em uma ação judicial). Esse compromisso, no entanto, pela lógica do sistema, será assumido com base em informações “declaratórias”. E se as informações “verdadeiras”, obtidas após a validação pelo órgão ambiental, forem diferentes das “declaratórias”? O que fazer com o compromisso assumido? É possível alterar o termo para retificar as informações? O Decreto 8.235/14 diz que ele pode ser alterado apenas quando houver comum acordo e desde que em razão de “evolução tecnológica, caso fortuito ou força maior”. Seria a análise dos dados por uma autoridade pública um caso fortuito?
Aliás, não foi nada fortuita a disposição do art.12 do referido decreto, que determina que os Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) em execução, e que prevejam a recuperação de passivos segundo as disposições da lei revogada, sejam modificados para diminuir a obrigação de recuperação. Ou seja, se um fazendeiro assumiu com o Ministério Público, em 2005, um compromisso de recuperar integralmente todas suas matas ciliares em até 15 anos, agora poderá rever esse compromisso para recuperar apenas parte, como permite a nova lei. Se o vizinho dele, no entanto, assumiu um compromisso de fazê-lo em apenas sete anos, por entender que era necessário estar mais rapidamente regularizado, mesmo que isso lhe custasse mais, ele deve neste momento estar querendo pular da ponte, pois já recuperou tudo e – pelo menos isso – o decreto nada fala em arrancar as árvores já plantadas.
Mas tão grave quanto a sinalização passada à sociedade (“não faça nada agora, enrole o quanto puder”) é o fato de que essa regra afronta diretamente o entendimento predominante do Judiciário, e já pacificado no Superior Tribunal de Justiça, de que a nova lei não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito – no caso, os TACs. São numerosas as decisões nesse sentido e a edição do decreto em sentido contrário só veio criar mais confusão jurídica. Comprar briga com o Judiciário para garantir o “direito” de não recuperar áreas, mesmo em compromissos assumidos antes da vigência da lei, mostra bem o compromisso do governo federal com a restauração florestal no País.
* Este artigo foi publicado originalmente no site do ISA – Instituto Socioambiental